Há alguns anos atrás, ainda quase recém-licenciada em Medicina, quando estava em missão de voluntariado em Moçambique, vieram trazer-me um adolescente de 15 anos. Estávamos em Naheche, uma aldeia perdida no meio da savana, onde nos tínhamos deslocado para a campanha de vacinação. O jovem impressionava pelos olhos tristes de quem não dormia há muitos dias e pela face emagrecida, profundamente escavada pela ausência do apetite próprio de quem está a crescer. Vinha acompanhado por uma senhora idosa e afável, de olhos baços, que se movia com a desenvoltura dos que há muitos anos se habituaram à escuridão permanente da cegueira. Alguma coisa de muito grave se passava com ele, dizia-me aquela avó, num sorriso tão triste que quase parecia um pranto. Estendeu a mão para a minha e guiou-me para a face do neto, percorrendo comigo cada relevo, detendo-se, certeira, em cada uma das suas inquietações...
- Esta criança não está bem - sussurrava-me -, está a ficar sem corpo e a pele já sobra em toda a parte... O problema está aqui.
Os gânglios do pescoço e por cima da clavícula estavam muito aumentados, duros, aderentes às estruturas vizinhas... Assustadoramente malignos! Era possivelmente um cancro do sistema linfático, um linfoma daqueles que se for tratado a tempo não tem mau prognóstico mas que, se não se tratar, o desfecho é fatal em pouco tempo... Um linfoma de Hodgkin, se quiserem muito saber-lhe o nome. Fiquei muito preocupada. A imagem do menino correu pelos meios que tínhamos à disposição e uma onda de solidariedade na cidade natal de um dos padres daquela missão conseguiu angariar o dinheiro suficiente para o enviar para Maputo, a milhares de quilómetros dali, para ser tratado.
Duas semanas depois, ainda a tentar organizar a sua transferência para o Hospital Central de Maputo, observei-o novamente e notei que os gânglios se tinham praticamente reduzido a metade. Nos entretantos a família tinha obviamente ido procurar um médico tradicional, que lhe dera a beber chá de beijo-de-mulata. Evidentemente duvidei do curandeiro. Duvidei de mim própria. Não confiei na prova que os meus olhos podiam testemunhar. Acreditei só no prognóstico que vinha nos meus livros e, com o acordo da família, transferi o menino para o Maputo.
Anos depois, inteiramente por acaso, vim a descobrir que desta flor selvagem, que cresce quase como erva daninha por todo o país, se extrai a vincristina, um agente de quimioterapia activo contra o linfoma...
A lição não veio a tempo de intervir em seu favor. De qualquer modo hoje voltaria a fazer tudo da mesma forma. O chá de beijo-de-mulata, isoladamente, nunca o poderia ter curado. São precisos vários agentes de quimioterapia, num cocktail injectado veias adentro para se conseguir modificar o curso terrível do linfoma de Hodgkin. Mas foi nesse momento que percebi o quanto há ainda a aprender com África.
Patrícia Lopes (Médica)
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